Para Talita, cuja bondade supera os limites da maldade...
A velhice chega para todos, Andy. Para todos.
Despertei agitado, não consigo voltar mais a dormir. Pego o meu caderno de anotações, ainda é de madrugada, um silêncio solitário me envolve, vejo as paginas e sinto as letas no papel. Sento-me em uma cadeira de balanço, ateio fogo em uma vela, e coloco os meus óculos, e começo. Eu me chamo Andy Murray e eu já fui um homem com muito vigor. E também já fui um garotinho trapaço. Hoje não passo de um velho, que vivera muitos anos, longos e preciosos anos...
Antes de Rosie, já tive minhas conquistas amorosas, as farras de adolescente, puxa vida, bons tempos. Agora, ouço crianças me chamarem de velho pútrido, e "cueca molhada", malditos diabinhos! Ah! E além disso sou reverendo, em uma cidade no interior do Texas. Me converti ao catolicismo (depois de velho, um passo mais perto da morte, tem que se procurar algo no que se possa acreditar).
Quase mal lembro dos meus filhos, as vezes uma velha foto surrada de Rosie, minha fiel esposa da qual se fora também a tantos anos, me lembra de alguns momentos inesquecíveis, se é que você me entende.
Todo mundo tem seus segredos, tem seus pecados, até um reverendo velho sem mais a perder. E eu quero contar um pra você. Isso ficou guardado a muito tempo, como uma múmia no sarcófago, tão velho quanto eu.
Mas que fique claro, eu sou um velho, e talvez esteja longe das minhas faculdades mentais.
O que meus olhos captaram ao decorrer dos anos foi o mundo se tornando caos. O homem evoluindo, a tecnologia inovadora, uma mistura de sonhos e devaneios, e de Asimov também.
Eu me tornei reverendo, você já sabe, e isso foi em Castle Rock em 1978 na Paróquia De Augustine. Isso é só um título para que as pessoas possam falar seus problemas (como se eu quisesse ouvir). Já ouvi tantas histórias, tantos pecados que já pensei, que Jesus Cristinho jamais absorveria tal alma. Já ouvi e vivi meu amigo. Minha vida tem sido uma tormenta, as vezes sinto que minha única companhia é minhas pernas que me levam à qualquer lugar. Embora ja sinto os passos diminuindo e as forças se partindo.
A luz da manhã matinal já começa a queimar meus olhos. Ah... Eu tive uma vida. Lembro da primeira xoxota que comi, Susan era o nome dela. Lembro da primeira bebida alcoólica que consumi para me mostrar para o grupo fodão do meu irmão que eu podia fazer parte da gangue. Lembro do primeiro soco que levei após interferir na briga de meu pai com a mamãe. Porra eu apanhei tanto.
Posso dizer que vivi muito. Mas sinto que pouco à pouco estou ficando mais longe da morte. Mais condenado a viver vegetando.
Quero contar um Vicio e um pecado meu antes que nem falar eu possa.
Quando eu era um garotinho, na mesma época em que queria me provar para os Fodões, entre os 12 anos. Papai nos levava para a fazenda nos finais de semana e que por sorte (ou não), eu conhecia um trieiro que levava para uma gruta, uma caverna escura e macabra. Ainda jovem e curioso me aventurei como um Indiana "burro" Jones.
A gruta era grande e coberta por folhas, um buraco no meio do nada, um portal em espiral na terra, uma palavra em uma língua estranha, algo como KROATOAM. Eu entrei lá, escorreguei e cai de bunda em uma poça de água, lama eu não lembro. Um rio corrente passava por ali, indo em direção ao nada, não tinha fim. Eu queria entrar lá, (porque se você parar pra pensar, só olhar não tem graça). Eu estava sozinho, estava quente e abafado, como sempre é no Texas. Tirei as sandálias surradas, o shortinho já costurado várias vezes. Dei dois passos, entrei na água, e sorri. Nadei, mergulhei, era como se eu estivesse no paraíso. Descobri meu próprio paraíso. Joguei a água pra cima. Pisei em falso, um buraco oco, senti uma pequena ondulação. Tentei voltar para o raso, mas fui acometido por uma sucção. Uma correnteza abrangente soprou, me atacou, bebi água, depois mais uma correnteza, e mais outra. Afundei.
A sucção ficou mais forte. Abro os olhos e o que vejo me assusta, restos de ossos humanos no fundo daquele rio, dentro daquela caverna. Entrei dentro do buraco, já não tinha forças pra tentar voltar à superfície. Angustiante, claustrofóbico, só me restava esperar o ar acabar e dissipar no fundo daquele rio macabro.
Fechei os olhos.
Submerso, numa especie de buraco de minhoca. Meu coração relutante não querendo parar.
Até que parou.
Silêncio total.
Aos poucos, bem devagar, o coração voltou a bater, aquele rio me trouxe um horror. Escuro e frio, mas eu estava ali, estava vivo.
E então deixei meu corpo ser levado. Até que parei entre umas pedras rochosas, abri os olhos, me levantei vomitei muito, o que vi foi incrível, um lugar lindo, uma ilha, com o mar que sempre sonhei em tocar. Havia borboletas, vermelhas e azuis. Havia árvores enormes. E girassóis. Mas o mar, aquele mar chamava atenção. Olhei para trás, nada.
Eu tinha morrido e ido para o céu? Fiquei o restante da tarde por lá, comi bananas, maçãs e uvas frescas. Água de coco estavam caídas perto do pé. Eu viveria ali numa boa. Um lugar vasto e provavelmente escondia coisas.
Até que o sono veio, junto com a noite fria. Uma noite com estrelas.
Quando despertei estava na cama no meu quarto, na fazenda. Era um sonho? O que meus olhos viram?
Bom, vivi muito tempo nesta incógnita. Até que decidi fazer algo, bom mas, antes...
Cheguei na parte do pecado. Você pode não acreditar, não contei pra ninguém, mas é que a cada 30 anos preciso mudar meu ano de nascimento. Embora na paróquia você escuta, fala mas nunca perguntam o seu passado nem sua idade. Porque desde esse dia na gruta eu conheci o paraíso, mas voltei com uma maldição; eu tenho 187 anos, Rosie se foi à quase 90, e meus filhos à quase 70. O paraíso me deu uma maldição, a maldição de viver pra sempre. Pode parecer até bom ser imortal, mas vi pessoas queridas morrerem. E eu continuar aqui, quando o mundo acabar, o que irá acontecer comigo? as vezes penso.
Mas meu amigo, eu mantive um vicio, e que é ir lá, na antiga gruta. A Gruta de Ossos, para ver o paraíso mais uma única vez. Eu não entro no rio, embora sinto ele me chamar. Aqui parece tudo tão complicado, tão corrido. E talvez eu queira Morrer outra vez.
Mas prometi que um dia iria naquela gruta, ela tinha um rio, e esse rio era meu velho amigo.
Quando completar 200 anos de existência, irei no velho amigo. Talvez demore, talvez não, ah... como sinto falta daquele lugar. A velhice chega para todos, Andy.
***
Ele encontrou o trieiro.
Aquele trieiro.
Ele se encontrou. Se reencontrou.
- Seja leve meu velho, eu nunca te esqueci. Minha Rosie, te encontrarei em qualquer lugar.
A correnteza se aproximou. O coração de Andy estremeceu. Entrou na água. Feliz e contente, e por uma única vez finalmente, satisfeito por completo.
Comentários
Postar um comentário
Faça um comentário, dizendo o que achou!